Entrevistas de Atleta
Pedro Henriques
Benfica - Treinos à chapada...
Pedro Henriques

Em alguns treinos do Benfica acabava tudo à chapada


No Benfica, Pedro Henriques treinou com colegas alcoolizados e foi protegido por Mozer quando Yuran lhe quis bater. No FC Porto decidiu nunca mais voltar a falar com um treinador sobre questões técnicas. O ex-jogador virou comentador, mas não alinha no ‘futebolês’. E responde aos treinadores que ameaçam tirá-lo da SportTV

O seu primeiro clube foi o Belenenses. Como foi lá parar aos nove anos?
Um colega de escola já lá estava e o pai dele levou-me. Fiquei seis anos na formação do Belenenses.

Com que idade se estreia na Selecção?
Tinha 15 anos. É o topo do mundo. Ainda era o Carlos Queiroz que estava à frente de todas as selecções. Foi num torneio na Venezuela, em 1990. O Queiroz já tinha sido campeão mundial de sub-20 em Riade e era o Super-Homem. Sentíamos que, com ele, ganhávamos a toda a gente.

Já tinha andado de avião?
Só para a Madeira ou Açores, já no Benfica. No Belenenses fomos à Bélgica e a França de autocarro, sem parar. Um filme desgraçado. Éramos infantis ou iniciados. Dormir no chão do autocarro. Cada dois jogadores ficavam numa casa de emigrantes. Foi engraçado, mas duro. De andar de avião tenho pânico. Só obrigado. Mas nunca tomo nada. Quero ser capaz de nadar de ou me safar se houver possibilidade.

A primeira chamada à Selecção coincide com a saída do Belenenses. Quanto foi ganhar na Luz?
Acabei por ir para o Benfica receber mil contos por época, que era mais ou menos o que o FC Porto também me oferecia. Tinha 15 anos e os meus pais preferiam que ficasse em Lisboa. E eu também. No Belenenses não ganhava nada além do passe L123 e fui ganhar três mil contos em três épocas.

Como se consegue manter os pés no chão?
Até aos 18 anos, quando comprei o meu primeiro carro, não mexi no dinheiro. Os meus pais davam-me roupa e comida, não precisava de dinheiro para andar a estragar. Só gastava os juros. Lembro-me que comprei umas botas Sendra, à cowboy, que custavam uns 30 contos.

Como ascendeu à equipa principal do Benfica?
O Nené foi talvez a pessoa mais importante na minha carreira. Dizia que tinha jogado até aos 37 anos porque treinava muito, alimentava-se bem e descansava. Ouvi aquilo e entrou. Encarei o último jogo pelos juniores, que já não interessava para nada, como uma final de um Campeonato do Mundo. No fim, o Nené disse aos meus colegas que eu era um exemplo e que o prémio seria a promoção ao plantel principal.

E, em 1993/94, foi logo campeão, com Rui Costa, João Pinto...
Só joguei seis minutos, em Braga. Era uma equipa do outro mundo. Quando entras lá dentro, é como se os cromos que tens na caderneta começassem a andar, a brincar e a treinar contigo. Havia um ambiente fantástico. Quando o Toni marcava treino de manhã e de tarde, era certo que havia almoço de equipa no Barbas. E se a malta se esticava um bocadinho à mesa, à tarde parecia que o campo estava inclinado e até a relva se mexia.

Iam treinar bêbados?
A maior parte bebia dentro do normal, só um ou outro é que ficava maldisposto. Lembro-me de um treino caricato, com jogadores a pisarem a bola e a arrastar a voz. Mas um treinador inteligente, se souber jogar com isto, pode agarrar um compromisso com os jogadores. ‘Vocês chegaram aqui assim, mas vão ter de compensar’. O Toni tentava gerir isso, mas era difícil porque aquilo eram carros de alta cilindrada.

Treinavam muitas vezes de manhã e de tarde?Em Portugal havia a mania que treinar muitas vezes era treinar bem. Apesar de o adjunto ser o Jesualdo [Ferreira] e de os treinos terem qualidade, ainda hoje penso que não há necessidade de treinar de manhã e de tarde tantas vezes.

Que brincadeiras havia no balneário?
Se a roupa era feia, penduravam-na logo num cabide no meio do balneário. O Nelo, quando veio do Boavista, só vestia Versace, mas das piores coisas que podia haver. Todos os dias ficava com a roupa pendurada. Aquilo era um horror, tipo Família Addams. Um dia lembraram-se de colocar copos de água fresca por cima do armário do Iuran. Quando se sentou para se equipar, começou tudo a atirar meias contra o cacifo de maneira a que os copos caíssem em cima dele. Ninguém acertava. Chico esperto, atirei uma e pimba, molhei o Iuran com a água gelada. Quis-me bater e a sorte foi o Mozer estar ali ao meu lado. ‘Ei, ei, vai-te sentar’, disse-lhe o Mozer.

Os três russos, Yuran, Kulkov e Mostovoi, eram um grupo à parte?
Estavam sempre juntos. E se calhavas na equipa deles, era apenas para defenderes, porque só jogavam entre eles. Ninguém lhes tirava a bola, mas só servias para o trabalho de sapa [risos]. Era uma equipa fantástica. Montes de treinos acabavam à estalada. Havia os russos, o Schwarz…

O Mozer…
Mas com o Mozer ninguém levantava a voz. Depois havia os portugueses mais velhos, o Rui Águas, o Silvino, o Hernâni, havia vários clãs. O Schwarz dava-lhe uma branca e virava o que fosse. Recordo-me de uma entrada mais forte do Hernâni que o mandou abaixo. O Schwarz vai atrás dele e faz-lhe uma ‘tesoura’. Levanta-se o Hernâni para lhe dar porrada, vem de lá o César Brito com retroactivos, porque no treino anterior também tinha levado uma, começa a crescer para o Schwarz e leva um estalo. Juntaram-se os russos todos pelo sueco, os portugueses do outro lado, e teve de acabar o treino. O Toni só dizia: ‘Não posso fazer treinos à porta aberta que é sempre isto’. Acabava tudo à chapada. Mas não passava de estalos ou empurrões, ninguém deixava ir para além disso. Era mais para deixar sair a pressão da panela.

Ainda era o seu pai que lhe controlava o dinheiro nessa altura?Aí já era eu, mas nunca fui de grandes loucuras. A minha paixão era os carros. O primeiro foi um Opel Astra GT. Não me recordo de quanto ganhava na altura, mas depois fui logo aumentado e deu para comprar a primeira casa, em Alfragide. Tinha 20 anos. Naquele tempo o primeiro objectivo dos jogadores de futebol era juntar dinheiro para comprar casa.

Por recearem que a carreira acabasse a qualquer momento?Sim. Eu acabei aos 30 anos e achava que ia ser aos 35. Mas podia ter acabado aos 25. E se tivesse sido assim, já teria uma casa. Nós ganhamos bem.

Uma minoria...
Sim, uma minoria. Mas naquela altura ganhava-se melhor do que agora em clubes como o Vitória de Setúbal, o Belenenses, o Marítimo. Pagavam-se bons ordenados. Quatro ou cinco mil contos por mês. Não estou a falar de um Ronaldo u nem de um Aimar. Os tectos eram mais baixos, mas a classe média ganhava bem. Quer dizer, o Herman José ganhava mais. E agora o Malato e a Catarina Furtado.

Como é jogar apenas seis minutos numa época inteira?
Aquilo para mim era um sonho. Nunca fui à tropa e era como se fosse a recruta. Só treinar com aquela equipa… João Pinto, Rui Costa, Neno, Silvino, Mozer, Schwarz, Rui Águas, depois o Ricardo Gomes… Todos jogadores de topo. Como tinha a mania dos carros, quando havia almoços de equipa, ia sempre com o Mozer. Era a loucura. Tinha um BMW 850i vermelho e o BMW M3. Ir e vir com ele para o Barbas dava-me quase tanto pavor como andar de avião. Gosto dele, tem carácter. Nunca gostei de puxa-sacos.

Depois do título em 1994, como viveu o período negro da história do Benfica que se seguiu? Esteve lá mais três épocas, com um empréstimo de seis meses ao V. Setúbal pelo meio.
Foram uma espécie de máquina de lavar. Cheguei a ver um treinador, não vou dizer quem, a falar ao telemóvel durante os treinos. Depois de termos sido campeões, soube-se que o próximo treinador seria o Artur Jorge. Chegou o Dimas e eu continuava sem jogar, por isso fui para Setúbal a meio da época. Tive um bom desempenho e regressei ao Benfica. Entretanto, saiu o Artur Jorge, entrou o Mário Wilson e deu-me uma oportunidade. Joguei até rebentar o joelho.

Como é passar por uma lesão grave?
É horroroso. Tinha tudo do meu lado. Estava a jogar bem, era titular do Benfica aos 20 ou 21 anos, ia acabar o contrato e tinha saído a Lei Bosman. Ainda vivia em casa dos meus pais e tinha a possibilidade de enriquecer rapidamente, quer fosse para fora, quer ficasse no Benfica com um novo contrato, mais próximo dos jogadores da classe média. Mas rebentei o joelho todo, a recuperação foi dolorosa, chorei. O meu pai teve de meter férias para me poder levar ao Estádio da Luz porque no primeiro mês não podia conduzir. Nem podia pôr o pé no chão.

Regressou à equipa titular…
Chegou o [Paulo] Autuori, o Dimas foi vendido para a Juventus e comecei a jogar ainda com algumas dificuldades. Depois há a troca do Autuori pelo Manuel José e ao fim de um ano, no mesmo dia, já não sei qual porque não sou supersticioso, voltei a lesionar-me no joelho, dessa vez só no menisco. Foi num jogo com o Sporting, num lance normal com o Sá Pinto, mas continuei a jogar e a treinar com o joelho todo ligado. O Manuel José tinha o El Hadrioui, mas preferia-me a mim a meio gás. Quando fomos às Antas, no dia anterior treinámos no hotel e não liguei o joelho. Estava de ténis, escorreguei e o resto do menisco foi à vida de vez. Tive de ser operado. E voltei a falhar a final da Taça.

Não voltaria a jogar pelo Benfica.
Exactamente. Um dia, já depois da final da Taça, saiu pela primeira vez no jornal a minha fotografia na lista de dispensas. Fui falar com o Toni, que era o director desportivo, e perguntei-lhe o que se passava. ‘Epá, Pedro, sabes’. Começou com aquela conversa de enrolar. ‘Já estás’, pensei. Mas questionei-o: ‘Andei aqui a treinar e a jogar lesionado, o treinador escolhia-me apesar de ter o outro que estava bom, e agora no fim da época ele fica e eu saio?’. ‘Sabes como é, é o treinador. Mas a Académica quer que tu vás para lá’. Respondi-lhe que não queria ser emprestado. ‘Tenho mais um ano de contrato, vocês ficam com o dinheiro e eu vou à minha vida’. Quando ele disse que não podia ser, fui directo: ‘Oiça, se tiver de deixar de jogar, deixo. Não meto mais os pés aqui. Ainda estou em idade de voltar a estudar’. Como ele gostava de mim, ou dizia que gostava, acabou por aceitar. O Benfica não me pagou nada pela rescisão e fiquei livre.

Já tinha garantias do seu empresário, Manuel Barbosa, quanto ao interesse de outros clubes?
Garantias? Conversa. Nas semanas que se seguiram, o Manuel Barbosa ligava-me: ‘Faz as malas que vais para o Oviedo’. Nada. ‘Faz as malas que vais não sei para onde’. À primeira ainda fiz, depois nunca mais. Já estava a ficar maluco. O Alavés esfumou-se, o Atlético de Madrid também. E foi acontecer aquela que não fazia sentido nenhum. Mas antes ainda aparece o Portsmouth. ‘Do Benfica para a segunda liga inglesa? Bem, pagam quase o dobro do que recebia. Quero lá saber, vamos embora’. Fui e queriam-me à experiência. Não aceitei. Estava no aeroporto com mais dois ou três intermediários quando liga o Manuel Barbosa, à espião: ‘Estás sozinho? Afasta-te um bocado deles’. Um era o filho dele. ‘Vou-te dizer uma coisa que nem ao teu pai podes dizer’. ‘Nem ao meu pai? Que conversa é essa?’. ‘Vais para o FC Porto. Já falei com o Pinto da Costa e está tudo acertado’. Pensei: ‘Este gajo está maluco, deve estar a gozar comigo’. Mas era verdade. Não queria ter saído do Benfica, mas decidiram assim e fui para o FC Porto. O melhor contrato da minha vida.


Fonte: Sol.sapo.pt
Autor: Nuno Simões