Árbitros respeitavam muito FC Porto
'No meu tempo, os árbitros tinham muito respeito pelo FC Porto'
No Benfica, Pedro Henriques treinou com colegas alcoolizados e foi protegido por Mozer quando Yuran lhe quis bater. No FC Porto decidiu nunca mais voltar a falar com um treinador sobre questões técnicas. O ex-jogador virou comentador, mas não alinha no ‘futebolês’. E responde aos treinadores que ameaçam tirá-lo da SportTV
Como é o balneário do FC Porto?
A
primeira vez que lá entrei, houve logo um jogador que me chamou à
parte. ‘Ouve lá, quem é que no Benfica é isto e aquilo?’. Não vou dizer o
nome, mas era um daqueles infernais dentro do campo, com quem eu tinha
pegas [risos].
Como é a linguagem entre adversários no calor do jogo?
Espero
que os jovens não leiam esta parte, mas lá dentro não dá para
controlar. Desde que o árbitro não veja, vale tudo. Desde dizer que a
mulher do outro anda com este e aquele, que és homossexual, que o teu
pai ou mãe são isto e aquilo… Tudo o que achares que pode irritar é
usado. Nunca usei o argumento do dinheiro que se ganha, porque isso já é
arrogância. Mas há jogadores que dizem para outros: ‘Quando tiveres
cinco milhões de euros na conta vem falar comigo’.
Com quem teve as pegas maiores?
Nunca
marquei ninguém como alvo. Mas contra o Capucho era sempre uma guerra
desgraçada. Com o Sérgio Conceição também. E quando apanhava o Paulinho
Santos… Ele gostava de dar e como eu não gostava de levar…
No FC Porto nunca foi ostracizado por ser de Lisboa?
Fui
sempre muito bem tratado. Quando cheguei, estava lá o Fernando Mendes,
que os tratava abaixo de cão. ‘Vocês não sabem falar, não se sabem
vestir, atrasados mentais, ainda bem que veio mais um gajo de Lisboa’. E
eu a pensar: ‘Este gajo é maluco’.
Tem alguma explicação para nunca se ter estreado pelo FC Porto?
O
plantel tinha cinco laterais esquerdos e nunca fui opção. Já nem
esperava pela convocatória. Tinha quatro anos de contrato e só lá estive
metade do primeiro.
Abordou o treinador António Oliveira?
Às
tantas fui falar com o Oliveira. ‘Mister, estou aqui há três ou quatro
meses e queria saber se estou a fazer alguma coisa de errado e o que
devo melhorar para ser opção’. Diz ele: ‘Estás a fazer tudo bem, estou
muito satisfeito, mas vieste do Benfica e tenho de ter cuidado a apostar
em ti para não te queimar’. Pensei logo: ‘Pronto, está feito, tenho de
me ir embora que aqui não jogo’. Foi a última vez que falei com um
treinador sobre questões técnicas. E acabei por ir emprestado para
Setúbal outra vez.
Sentiu diferenças ao nível da arbitragem no Benfica e no FC Porto?
No
meu tempo havia diferenças. Os jogos não davam todos na televisão. E os
árbitros tinham muito respeito pelo FC Porto. Quando jogava no Setúbal,
uma vez fui pisado na canela, nas Antas, e levei cartão amarelo. Não
tinha nada que ter metido a canela debaixo da sola do Rui Barros ou do
João Pinto [risos].
Já não é assim?
Não tem
nada a ver. Não digo que não haja corrupção, mas hoje os jogos dão quase
todos na televisão e há algum pudor. Os erros que acontecem são
normais. E atenção que falo do FC Porto como falo do Benfica e do
Sporting. Porque isto já rodou. Já todos ganharam campeonatos. Às vezes
digo a amigos: ‘Uns foram campeões por causa dos árbitros. E os outros,
já não foram pelos árbitros?’.
Após a conversa com António
Oliveira, não voltou a falar com treinadores sobre questões técnicas. E
os treinadores não tinham essa iniciativa para com os jogadores menos
utilizados?
Poucos. A qualidade de treino dos treinadores
portugueses conceituados na altura era zero. Qualidade de jogo e
trabalho psicológico: zero. Iam ganhando por causa dos jogadores. Hoje é
diferente. Não é possível o Benfica ou o FC Porto jogarem aquilo que
jogam sem trabalhar com qualidade. Não há milagres.
Depois
de FC Porto e V. Setúbal, seguiram-se duas épocas no Belenenses, uma no
Santa Clara e mais duas na Académica. Como foi a experiência nos
Açores?
O Santa Clara tinha dinheiro, ofereceu-me muito mais
do que o Belenenses, mas a mentalidade era má. Havia funcionários e
jogadores com o travão de mão sempre puxado, porque se o clube ganhasse
uma dimensão maior sabiam que iam cair. Era tudo pouco profissional e
comecei a irritar-me.
Em que é que se reflectia o amadorismo?
Umas
vezes o relvado estava em más condições, outras o balneário não era
limpo ou não havia água quente. Também havia treinos com bolas vazias. A
certa altura, chutava-as para fora do campo. Fazíamos viagens de meia
hora, por estradas cheias de buracos, para irmos correr para a mata.
Nada daquilo fazia sentido numa equipa profissional.
O treinador era o Carlos Alberto Silva?
Primeiro
foi o Manuel Fernandes, depois é que veio o Carlos Alberto Silva. Uma
vez perdemos 5-0 com o Guimarães, era o [Augusto] Inácio treinador
deles. Chegou o dia de receber e começo a ver colegas meus chateados.
Quando veio a minha vez, digo-lhes que faltava dinheiro e respondem-me
que estavam com azia por causa da goleada com o Guimarães e compraram
umas garrafas de whisky para afogar as mágoas. ‘Com o meu dinheiro? Com
autorização de quem? Nem os meus pais mexem no meu ordenado. Fica aqui o
dinheiro todo, quando estiver certo chamem-me. Se não quiserem pagar,
não paguem’. Deram-me logo o dinheiro todo.
Recebiam em dinheiro?
Era esse o hábito no clube.
Termina a carreira aos 30 anos. Porquê tão cedo?
Decidiram
por mim. Sempre que era operado ao joelho, vinha a Lisboa e recuperava
com o [António] Gaspar. Nesse ano, lesionei-me e a Académica não me
deixou. Tinha ido buscar um novo fisiatra e o posto médico, que
funcionava muito mal, estava preocupado com a imagem para o exterior. É
aquela mentalidade tacanha que nós temos. Então fizeram-me uma
infiltração no joelho para tratar uma tendinite que não tinha. Fui falar
com o fisiatra. ‘Olhe, vocês já me rebentaram o joelho todo e, se eu
continuar a ser tratado aqui, nunca mais volto a jogar futebol. Tenho
três filhos, estou em fim de contrato e tenho de voltar ainda este ano,
se não acabou. Vou tratar-me a outro lado’. Falei com o Nelo Vingada,
que era o treinador, e ele apoiou-me. Resultado: a infiltração tinha-me
danificado o tendão, que teve de ser cortado mais uma vez e ficou com um
terço do tamanho normal. Quando recuperei, nunca mais fui convocado.
Até os juniores e as pedras da calçada eram convocados, menos eu. E o
treinador, que tinha sido meu treinador na Selecção de sub-16, até hoje
não me disse uma palavra. Retirei-me e fiquei dois anos sem ver futebol.
O pior momento que viveu dentro de campo?
Rebentarem-me
o joelho. Foi o Chico Silva, um lateral direito careca, e até acredito
que tenha sido involuntário. Mas até hoje nunca me pediu desculpa. Mesmo
entre criminosos, acho que eles pedem [risos].
Lidou com doping?
Eu
nunca tomaria. O que tomei foi vitaminas. Houve um treinador do Benfica
que obrigou todos os jogadores a tomarem vitamina B na veia. Só
experimentei uma vez. Odiei. E era um treinador que eventualmente até
gostava de combustível com aditivo. Recusei tomar aquela vitamina e
disse que podiam informar o treinador. ‘Se tenho de tomar isto para
jogar, então não jogo. Faz-me sentir mal. Se é para tomar vitaminas,
tomo em comprimidos’. Os casos de doping que havia eram com treinadores
que diziam aos jogadores que, se não tomassem, não jogavam. Eu estava
sempre preparado para dizer que não.
A maior confusão que viveu no futebol?
Foi
pela Selecção, em Burgos. Numa noite, o Queiroz viu-nos a beber cerveja
e, quando já estávamos todos na palhaçada num dos quartos do hotel, o
Porfírio lembra-se de pegar no extintor e avisa: ‘Vou abrir’. Ninguém
passou cartão. E ele abre. Pó por todo o lado, tudo branco. Vem o
Agostinho Oliveira, abre a porta e fica que parecia o Pai Natal, cheio
de neve. Reunião para saber quem não tinha bebido naquela noite, que
eram dois ou três. Nenhum se acusou. Diz o Queiroz: ‘Bem, vocês não
jogam nada, mas pelo menos têm espírito de equipa’.
O jogador mais divertido?
O
Neno. Ele e o Ailton punham-se a passear de mão dada no balneário,
cheios de espuma, com o Ailton a fingir que era um macaco e o Neno o
Tarzan. O Neno estava sempre a rir e tinha a mania que cantava...
[risos].
Também jogou com Paulo Bento no Benfica. Que impressão tem dele?
«Bom carácter. Vivemos num país em que, se tens convicções e falas delas abertamente, tens mau feitio e crias conflitos.